ainda lembro daqueles dias
lembro de tanto mas às vezes me esqueço
lembro daquele sonho com a pomba branca
na primeira noite do ano novo enquanto eu respirava debaixo dágua
ela pousou na minha mão e isso era a suprema confirmação
lembro de dançar como se não tivesse corpo
e o corpo fosse muito mais que corpo fosse o infinito e além
lembro de tirar a eternidade pra dançar e ela aceitar ser conduzida
ali o vôo humano era com pés no chão pés de bailarina de maracatu
lembro daqueles pãezinhos frescos que entreguei humilde praquele senhorzinho da rua
ele me agradeceu apertou minha mão e foi lavá-las na água da sarjeta antes de se meter a comer
lembro de morrer tantas vezes
sempre do mesmo jeito a morte pelo amor supremo
a morte em vida que é a vida de dentro da vida mais universal
lembro de ser cristal nuclear planetário e todo canto de pássaros que o sustenta
e depois brotar de novo do chão como geizer de espírito que eclode
lembro de ser aquela criança amedrontada morando num veleiro que podia estar se enchendo dágua
lembro de derramar aquele coquetel de camarão ao molho rosé no convés e ficar com medo da rinha
e a mamãe me acalmou dizendo que tudo bem filho a gente recolhe os cacos de vidro e está resolvido
lembro que falava os piores palavrões do mundo mas era só porque gritar elogios aí sim seria coisa de louco
lembro daquele buquê de flores que mandei praquela menina tão bonita que nunca quis falar comigo
e da primeira vez que beijar foi dar à luz galáxias de emoção ah lembro bem ela era o pêssego falante
lembro de tantos abraços e colunas estalando e cervicais despontando
se recebo algo de volta do mundo é a massagem sutil de Deus quando massageio alguém atento
se recebo algo de volta é gélido ardor da cachoeira que vem botando pra fora toda sinusite acampada
sei que o que mais gostaria de lembrar agora esqueci
porque a memória é coisa viva com vontade própria
mas lembrar ajuda a fazer reconhecer
que de tudo que faço e fiz
ficou só a parte mais doce
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